Sophia, in A Phala - Um Século de Poesia
«O modo como Sophia acentua que o facto de o poema ser feito sílaba por sílaba e de acordo com uma rigorosa disciplina o aproxima de uma dádiva dos deuses, fazendo dele o lugar da liberdade, sugere uma valorização muito particular do ritmo, enquanto maneira de ganhar forma, de atingir uma “inseparação” do sentido e da letra capaz de situar-se para além do arquivo. […]
«A poesia de Sophia sabe que as coisas do mundo não podem ecoar linearmente nas palavras – porque a palavra isolada não conseguiria libertar-se da arbitrariedade que, ao mesmo tempo que a associa a um referente, não anula a existência entre eles de uma separação por onde o caos sempre ameaça emergir. Em contrapartida, as sílabas ordenadas são já a voz do mundo, pois este precisa da poesia para falar e, por isso, produz discurso, não palavras, mas versos: “O meu viver escuta / A frase que de coisa cem coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua escrita” (22). Como é dito no poema “Bach Segóvia Guitarra”, “Palavras silabadas / Vêm uma a uma”, e só a silabação traduz “A Música do ser” (23). Digamos, então, que as sílabas são a matéria que permite encontrar “[…]a ordem intacta do mundo / a palavra não ouvida” (24), e que esta é sempre relacional e rítmica.
«Em absoluta concordância com esta perspectiva, o poeta é “um escutador”, e “fazer versos é estar atento”, “[d]eixar que o poema se diga por si” (25), ou seja, ouvir as frases por inteiro, evitar que o ritmo se quebre, deixar que uma sílaba conduza a outra para que as palavras justas possam surgir (juntas): as relações entre os sons tecem o fio discursivo que assegura a verdade do sentido porque o submetem a uma certa geometria, a uma ordem construtiva. Assim, apesar de procurada e humanamente “feita”, a ordem do poema é também, e sem contradição, “escutada” como se fosse recebida dos deuses, dado resultar inteiramente livre.»
Rosa Maria Martelo, “Sophia de Mello Breyner Andresen: O fio de sílabas”, in A Forma Informe: Leituras de poesia, Assírio & Alvim, 2010.
(22) Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Obra Poética III, p. 89.
(23) Idem, p. 33.
(24) Idem, p. 67.
(25) Idem, “Arte Poética IV”, Dual, Obra Poética III, pp. 166-7.
«O modo como Sophia acentua que o facto de o poema ser feito sílaba por sílaba e de acordo com uma rigorosa disciplina o aproxima de uma dádiva dos deuses, fazendo dele o lugar da liberdade, sugere uma valorização muito particular do ritmo, enquanto maneira de ganhar forma, de atingir uma “inseparação” do sentido e da letra capaz de situar-se para além do arquivo. […]
«A poesia de Sophia sabe que as coisas do mundo não podem ecoar linearmente nas palavras – porque a palavra isolada não conseguiria libertar-se da arbitrariedade que, ao mesmo tempo que a associa a um referente, não anula a existência entre eles de uma separação por onde o caos sempre ameaça emergir. Em contrapartida, as sílabas ordenadas são já a voz do mundo, pois este precisa da poesia para falar e, por isso, produz discurso, não palavras, mas versos: “O meu viver escuta / A frase que de coisa cem coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua escrita” (22). Como é dito no poema “Bach Segóvia Guitarra”, “Palavras silabadas / Vêm uma a uma”, e só a silabação traduz “A Música do ser” (23). Digamos, então, que as sílabas são a matéria que permite encontrar “[…]a ordem intacta do mundo / a palavra não ouvida” (24), e que esta é sempre relacional e rítmica.
«Em absoluta concordância com esta perspectiva, o poeta é “um escutador”, e “fazer versos é estar atento”, “[d]eixar que o poema se diga por si” (25), ou seja, ouvir as frases por inteiro, evitar que o ritmo se quebre, deixar que uma sílaba conduza a outra para que as palavras justas possam surgir (juntas): as relações entre os sons tecem o fio discursivo que assegura a verdade do sentido porque o submetem a uma certa geometria, a uma ordem construtiva. Assim, apesar de procurada e humanamente “feita”, a ordem do poema é também, e sem contradição, “escutada” como se fosse recebida dos deuses, dado resultar inteiramente livre.»
Rosa Maria Martelo, “Sophia de Mello Breyner Andresen: O fio de sílabas”, in A Forma Informe: Leituras de poesia, Assírio & Alvim, 2010.
(22) Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Obra Poética III, p. 89.
(23) Idem, p. 33.
(24) Idem, p. 67.
(25) Idem, “Arte Poética IV”, Dual, Obra Poética III, pp. 166-7.
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