«João Bénard era e é um escritor. Programador de filmes sim, mas não se tente arquivá-lo na académica gaveta dos historiadores de cinema e muito menos na gaveta dos críticos de cinema. A estratégia de programação de João Bénard era servida por um dispositivo narrativo que, literariamente, a replicava e a complementava.
[…] era assim, indomável, que o João escrevia torrencial, apaixonado, cada texto um monte dos vendavais. E esta compulsiva dramatização do acto da escrita contaminava a própria escrita. Os milhares de textos que o João Bénard nos deixou estão furiosamente invadidos de aventuras, aventuras de comboios a entrar em túneis escuros, aventuras de vertigens em campanários, como as de Cary Grant ou Jimmy Stewart nos amados Hitchcock. São textos que estilhaçam todos os tabus de sexo e morte e nos oferecem tantos jardins de prazer como os filmes que lhes deram origem. São textos – para usar um termo que o faria soltar uma gargalhada – pregnantes de drama.
São textos em que João Bénard reescreve cada filme. Só com palavras volta a iluminar a cena, recompõe o enquadramento cortando um bocadinho mais à esquerda, e volta a chamar os actores redesenhando-lhes a boca, os olhares, a angústia de uma despedida ou de um reencontro, a inadjectivável solidão de Rosebud, trenó esquecido na neve, a pasmosa alegria de toda a glória da vida no milagre da ressurreição que Dreyer encenou em “Ordet”.
O que é que o João nos deixou escrito? Deixou-nos filmes escritos. Chamem-lhes se quiserem filmes-textos ou textos-filmes.
Esses textos são cinema porque contêm tudo o que é essencial da mise-en-scène do cinema narrativo – o ângulo da câmara, um travelling, os cambiantes da luz, o esplendor ou dura escassez de um décor.
Esses textos são literatura porque cumprem todas as unidades dramáticas do romanesco, enunciam conflitos, dão densidade e dimensão a personagens, desenvolvem com exaltação peripécias e incidentes que fazem avançar a acção e, por fim, happy-end ou final trágico, resolvem o conflito.
Foi assim que o João escreveu a maioria das suas folhas. Tantas vezes com o olhar cheio de infância, o João escreveu em harmonia e fé como se pudéssemos ainda encontrar um mundo perfeito, inocente e inaugural, igual ao que nos faz chorar no “How Green Was My Valley”, de John Ford.
Muitas e tantas outras vezes, o João escreveu com um pessimismo profundo, mergulhando numa metafísica da perda, como se, uma vez doente, à esplêndida rosa que o verme mordeu, nada lhe pudesse já restituir o fulgor, a graça, a plenitude. Nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the glory in the flower. Ou de como, tantas vezes, o escritor João Bénard foi irmão gémeo de Nathalie Wood, essa trémula e perdida criação a que Elia Kazan chamou Deanie Loomis.»
Manuel S. Fonseca
[Ler texto completo, sob o título «João Bénard, as pessoas e o amor», AQUI]
Obras de João Bénard da Costa no catálogo da Assírio & Alvim: Os Filmes da Minha Vida / Os Meus Filmes da Vida (2 volumes); Muito Lá de Casa (1 volume); Crónicas: Imagens Proféticas e Outras (já disponíveis 2 de 4 volumes a publicar).
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