quinta-feira, 5 de novembro de 2009

«Da morte livre»



«Começo pelas palavras. Desenterro livros já lidos. Vou atrás de um daqueles temas que nos perseguem, até que um dia os exorcisamos pela escrita.
[...]
Jean Améry, esse, ultrapassa toda a metafísica. Está aquém dela, como quem prepara serenamente a morte livre, escrevendo sobre ela (em 1976) como se estivesse já a «pôr a mão em si» (a suicidar-se com uma overdose de barbitúricos em 1978, num hotel de Bruxelas). Na abertura do seu livro, notável testemunho de uma morte anunciada, escreve: «Sou eu aquele que “põe a mão em si”, que morre depois de tomar barbitúricos, de os levar “da mão à boca”». O corpo assume a inevitabilidade da sua morte (não importa agora com que motivação, ou a partir de que causa), a consciência «cai em si» e traça a linha divisória entre morrer e escolher a morte. De um lado, é a morte que vem vindo e chama, e eu respondo e vou (passivamente, sem saber como). Do outro, é o agente (actor?) da morte livre que grita: «Vou saltar!». Age, é ele a falar, e a morte é a resposta. O salto é o salto para o abismo e para fora de toda a «lógica da vida» (é este momento antes do salto que, para Améry, «igualiza» todos aqueles que se decidem pela morte livre).

Ninguém que esteja «de fora» pode arrogar-se a pretensão de compreender, muito menos o direito de condenar, este salto do corpo para o além de si. Nem sequer aquele que o dá é senhor dele e o domina. «Nós somos o nosso corpo, não temos o nosso corpo», escreve Améry. Imagine-se esse «ser o corpo» em situações-limite. No limite, a mão age e o corpo, que ela não «tem», explode. É por isso que quem está de fora não pode entender o gesto livre da morte livre.»
Excerto de texto de João Barrento [ler todo AQUI]

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