sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Myra

A partir da próxima semana (dia 23) nas livrarias, Myra, o novo livro de Maria Velho da Costa

Myra
Maria Velho da Costa




Edição brochada (224 pp.)
Classificação: Romance
Colecção: A Phala
16 €

Aqui fica o segundo capítulo deste livro:

Era noite cerrada. O camionista Kleber segue pela faixa da direita. As traves de madeira estralejam por detrás da cabine. Ora se vê, ora não se vê bem o perfil hirsuto, ruivo, de Kleber. A miúda vai sentada ao seu lado com o cinto de segurança por cima da manta de que só tira uma das mãos para afagar a cabeçorra do cão aos pés. E para ter comido o hamburger que Kleber lhes comprou na estação de serviço.
Os antigos egípcios acreditavam que era um deus-cão, Anubis, que os conduzia na barca dos mortos, diz Kleber.
Eu queria que este se chamasse Tzar, mas eles não deixaram. Que era falta de respeito. Ficou César.
Vem a dar ao mesmo, Sónia. Um nome é um destino. E depois?
Não é não, senão a pessoa mudava de destino cada vez que mudasse de nome. E depois, já lhe contei, só que comecei pelo fim, quando o Senhor Kleber me apanhou na berma, toda encharcada, com o César neste estado.
Myra continuou a bela narrativa. Kleber não parecia espantado,
nem incrédulo. Como se tudo na vida fosse possível.
Depois eles fizeram-me vir de lá tinha eu seis anos para eu não ficar ladra como os meus irmãos. A minha avó chorou muito. Eu vim de carrinha em carrinha. Ninguém tinha papéis, mas os que me iam trazendo tinham sempre dinheiro e onde ficar. Quando cheguei aos meus pais não os conheci. Eles também choraram muito mas eu chorava mais com saudades de casa da avó, que era muito pobre mas tinha um quintal e às vezes lá conseguia que eles lhe dessem dinheiro para comprar um ganso que ela engordava com sobras de pão seco e couves do quintal. Isto no Verão porque no Inverno passávamos muito frio a pedir na neve à porta de S. Basílio e das entradas quentes do Metro, até nos enxotarem por causa dos turistas. Escumalha russa, diziam, escumalha russa.
Santa mãe Rússia, disse o Sr. Kleber, abrandando para deixar passar uma carrinha com um carregamento de fardos de palha. Para lá cortiça, para cá palha e betoneiras. Santa mãe Mundo.
O cão vai vivo?
Vai sim, agora que comeu e bebeu água da chuva. E vai quente.
E Myra afagou o que não seria mais Rambo.
Vais bem, César?
E o cão agitou a cauda.
Bom, bom, também sabia mentir.
E depois?, disse o Sr. Kleber. Como foi cá? Desamarra-lhe a corrente. Há para aí um cinto, o bicho no estado em que está não precisa de levar tanto ferro no cachaço.
Tantos cuidados, pensou Myra. Se eu tiver que fugir deste, como é que faço?
E continuou com a sua narrativa mirífica pela noite e estrada dentro. Clareava. Havia plainos e sobreiros descarnados e casas caiadas, com os pés, as portas e as janelas em azulão. Casas caiadas. Já não estavam na auto-estrada mas num ramal bordejado de mimosas em flor. Pode-se ser morto e esquartejado em qualquer lugar, mas Myra, ladina, não tinha muito por onde escolher. Nem que ele lhe pedisse uma mamada e isso ela tinha aprendido a fazer.
Falta muito?, perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinza na madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono.
Falta o que falta da tua história. E o Sr. Kleber sorriu.
Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta do paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.
O Sr. Kleber é professor?
Não, mas fui bem ensinado. Não como crianças e muito menos carne de cão. Ora diz lá, que até chegarmos há tempo.
O que é uma herdade, senhor Kleber?
É aquilo que se herda, mas também se compra e vende.
É sua, a casa?
São várias casas, como cogumelos aos pés de um castanho, que é a patroa, na Casa Grande. É para lá que vais. E depois? Há quanto tempo tens o cão, Sónia?
Há cinco anos, mentiu Myra mais.

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